terça-feira, 3 de março de 2015

O ROSTO




O ROSTO
(O engenheiro do ar)

O rosto se desgasta.
Franze-se bastante, de frente para o mundo
e seu repertório de violência.

Chorou, ainda que muitas vezes às escondidas,
por razões tão distintas
que não cabe agora enumerá-las.

Escutou tanto diálogo vazio,
tanta contradição,
que até maldisse a linguagem
e seus usos,
esquecendo-se da arte.

Pronunciou protestos, pequenos talvez,
ou apenas catarse;
leu manifestos a favor e contra,
segundo as circunstâncias;
recitou poemas em voz baixa,
plenos de dúvidas e espanto.

Observou o mundo e suas falsas mudanças,
o fabrico de pensamentos
que justificam qualquer ato,
como prisão, tortura e morte.
Fechou os olhos diante
das execuções sumárias das auroras.
Cansou-se.

O rosto e as rugas.
O rosto e as marcas.

A fisionomia adquire outras expressões,
como impõe o tempo.

O rosto se desgasta.
Não quer mais apreciar certas paisagens.
A idade perde o glamour
e as autoestradas oferecem pequenas alternativas de fuga.

Está ranzinza.
Não aceita a sopa, não aceita as orquídeas.

Recusa-se ao jornal.
O dia ainda é ontem?, pergunta-se retórico.
Como não faz mais a barba,
há muito não se olhou no espelho.

Por isso não dá pela presença
de estranhos pelos,
nem pelos olhos de outro.

O rosto é o próprio lobo.



 Marcus Vinicius Quiroga



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