terça-feira, 31 de março de 2015

SISTEMA



















Marcus Vinicius Quiroga


SISTEMA


Quem opera a máquina do mundo
de pé permanece nos três turnos.

Vigia exemplar de horas vazias,
de acontecimentos, de acidentes,
aciona o botão, dá-lhe partida
e mantém-se atento ao desempenho.

Lubrifica as peças da engrenagem,
como se usasse óleo do mais santo,
espécie de azeite ou feito graxa,
que ameniza atrito, evita sangue.

Do alto de seu posto, o funcionário
usa luvas, quando toca a chave.
E as luzes que tanto acende e apaga
mostram quão eterna é sua face.










segunda-feira, 30 de março de 2015

NO PELO DAS SOMBRAS












Marcus Vinicius Quiroga



NO PELO DAS SOMBRAS


muitas coisas causam espanto
e até os olhares divergem,
não lidam fácil com opostos.
mesmo os espelhos são enganos:
quando supõem o visto certo,
não veem no reflexo o nó.

o que emerge, o que vem à tona,
nem sempre é o melhor espelho,                          
difere às vezes nas feições.
por exemplo, se sobre as sombras
digo que elas têm lá seus pelos,
reagem com pedras e nãos.

e logo a polícia interfere:
põe toda sombra dentro da cela,
marca na pele da linguagem
o cigarro de seu espanto;
autua a imagem em flagrante,
que o mundo não é razoável.



sábado, 28 de março de 2015

DA MEMÓRIA DE UMA ESTRADA E SUAS BIFURCAÇÕES


















DA MEMÓRIA DE UMA ESTRADA E SUAS BIFURCAÇÕES 


a liberdade se extravia
numa estrada de Minas
sem rasto, pegada, vestígio

imediatamente a polícia
se põe em encalço e vigia
todas as terras, na superfície

ao sol ou nas horas sombrias,
que a lei exige o ofício
de cão, de radar, de espia

e sentinelas fazem mira
com arma de todo calibre
são ordens, não livre arbítrio

a liberdade se extravia
súbito, após uma esquina
e dela não se tem mais notícia

lá pelo morro é vista
outros dizem “pela planície”,
como quem sabe e despista

aos poucos, em toda freguesia,
à liberdade alguém assiste
em seu discurso de guerrilha

e se estende o longo pavio
por onde sua palavra é bem-vinda
a negros, mulatos e índios,

pois aos membros da fidalguia
é liberdade em parte, só devida
ao não pagamento da dívida

são coisas de moeda, não utopia
que enche os olhos de delírio
e com outros corações conspira

liberdade é ponte levadiça
portões abertos da enxovia
estrada sem marca de limite

não se atém a acordos políticos
é palavra sem cartório e registro
que se espalha voraz, prolixa

e hoje inesperada se extravia
na noite de Minas, nas trilhas
das cargas de ouro e designa

que, ainda que tarde, um dia
não usará do fogo o estigma
antes será escravo fugidio

para em quilombos ter abrigo,
enquanto em Vila-Rica
ouvir-se só a voz da tirania

como a liberdade não se poria
contra os gigantes, os moinhos
contra as balas e facas da milícia

é el-rei quem de longe atira
com mãos alheias, alheios rifles,
mas com sua a boa pontaria

e os corpos que caem dos nativos
são números apenas, são lista,
a morte em forma de estatística

o que importa mesmo é o quinto,
o imposto, a taxa, o dízimo,
mais que uma ou outra vida

aquele que do medo se desvia
e enfrenta o império, a conquista,
sabe da liberdade o risco

e este com o seguinte se alia
e em reuniões clandestinas
faz planos de paz e justiça

para que o país enfim se livre
de todos os reis e cobiça,
de toda polícia e seus crimes,

de todo estrangeiro nas minas
que nos deixa sem nada, à míngua
apesar de nossos o veio e o garimpo

a liberdade se extravia,
mas esquece em nós o rastilho
que queima como se o enigma

se elucidasse e fosse visível
no rosto de todo nativo, no riso
dos homens agora paixão e vertigem 

















sexta-feira, 27 de março de 2015

AVAROVARA



Marcus Vinicius Quiroga


AVAROVARA


todo sertão é circunferência.
inútil buscar fresta ou saída.
deus e o diabo logo reiniciam
o duelo por terras adentro.
a serpente morde o próprio rabo,
símbolo do eterno recomeço,
e vai no sertão, este exagero,
se esgueirando como quem escapa.

ele lentamente engole tudo,
goela abaixo com vão desespero,
e aos poucos destripa os sertanejos,
apesar da fama de tão brutos
na estrada só deixa os esqueletos,
após saqueá-los dos pertences,
após devorá-los qual serpente,
após arrancar-lhes dedo a dedo


todo sertão é espiral.
inútil buscar tipo de porta.
quem dali um dia às pressas parte
mais cedo ou mais tarde enfim retorna,
como se o sertão fosse esta esfera,
que se refletisse sempre a mesma,
lugar de partidas, lugar zero,
onde o homem não tem voz nem vez.







quinta-feira, 26 de março de 2015

VIDA MÍNIMA




















VIDA MÍNIMA


o que procuro da vida tão mínima
não é o que se perde: medo e esfinge
nem a falsa alegria, a pantomima,
mas o corpo que saiba ser a síntese
das manhãs como pedra de alquimia

o que procuro da vida não mínima
é que ela não seja esta mulher-ínsula,
sempre com outros olhos e outra língua,
mas a que hoje me acolha com mãos íntimas
e me dispa do que em mim é exílio

o que procuro da vida chão mínimo
não é a terra árida que não vinga,
tampouco o descaminho da via íngreme,
mas o movimento da água que anima
o sonho em nós ainda verossímil

o que procuro da vida grão mínimo
é achar na leitura de seu índice –
um substantivo comum feminino –
o fio, a saída do labirinto
o sol contínuo, simples como um sim




 Marcus Vinicius Quiroga





terça-feira, 24 de março de 2015

O ENGENHEIRO Nº 2


Marcus Vinicius Quiroga


O ENGENHEIRO Nº 2
 (O engenheiro do ar)

O engenheiro não sonha. Desenha
poemas à mesa do escritório.
As palavras têm as superfícies
evidentes. Quanto às profundezas
não são vistas por causa do pó.

Coisas simples ou como dizê-las,
isto diz respeito ao engenheiro:
pensa “jogo de tênis com rede”.
Metáforas como a feita acima
são um bom exemplo de didática.

Ele supõe ser Corbusier
e faz só palavras transparentes.
Sombra alguma se debruça sobre
o texto escorreito. Bem rente
à página, deita-se o sentido.

A leitura é de águas claras, rasas:
não há como se perder no fundo.
É bom que se faça uso de boia,
caso o texto esqueça a calmaria,
com a tempestade do simbólico.










segunda-feira, 23 de março de 2015

ALEGORIA PARA UMA BAILARINA SEM REDE CE PROTEÇÃO

ALEGORIA PARA UMA BAILARINA SEM REDE DE PROTEÇÃO
 Campo de trigo maduro)

a louça se desequilibra e se espatifa
a perda de uma peça desfaz a baixela

como lidar com o irreversível fato:
o presente de casamento desfalcado?

se ao menos fosse uma lasca. Não, nem mesmo isto
seria aceito pela louça ainda não gasta

só no dia das núpcias e das demais bodas
serviram-se iguarias para íntimas bocas

não houve outras datas que lhe fizessem jus
nem solenidade por mais alto o seu custo

a baixela permaneceu dentro do armário
em exposição como no museu de cera

seria este o seu uso: o de ser exibida
e não o de ser suja e lavada na pia

e panos de prato, mesmo os de fino linho,
quando a enxugaram, sempre foram sacrílegos

melhor, se tivessem ficado sem contato
de mãos servis e sem estirpe de criados

e até das mãos de mais respeito da família
melhor, se nenhuma a tivesse um dia erguido

seria esta a baixela de todas a virgem
intacta de paixão, intacta de vertigem

aquela que teria em si sempre latente
o desejo para uso, a véspera, o suspense

seria ela a delícia mais apreciada
que qualquer uma de hipotéticos jantares

e os elogios feitos no final da ceia
seriam todos dirigidos à baixela

e o apetite, de água na boca, insaciável
seria por suas peças, em unidade

como lidar com o  irreversível fato
e conviver com o que agora se fez cacos?

como juntá-los e, quem sabe, recompô-los
sem ter a sensação de perda, dano, dolo?

quem retrocede no tempo e ampara a louça,
que sem a rede de proteção saltar ousa?









domingo, 22 de março de 2015

DESERTO SEM ARREDORES





















DESERTO, SEM ARREDORES
 (A língua dos desertos)


a geografia do deserto
não se sujeita a mapas,
não se explica em pesquisas.

há desertos que diferem
das descrições e fotografias,       
como se terra exótica.

é feito de outra areia
que, supostamente mais fina,
cega mais fácil as vistas.

não tem oásis, nem miragens,
nenhuma hipótese de especulação,
de intervalo em sua calmaria.

lá todo navio fantasma
encalhou há muito e já fina,
sem ruído de motor, sem partida.

o deserto não se faz só de sol
ou do lume de que aproveita,
mas queima quem acaso o habite.

este deserto não é feito de círculos,
nem de delírios que acontecem
aos que o aceitam como desafio.

existe latente no homem que segue
entre um sertão e outro, em busca
de si mesmo, com o tato cego,

e não encontra nada além de areia
que o vento espalha à revelia
e o deserto acrescenta desertos, em teia.


 Marcus Vinicius Quiroga





sábado, 21 de março de 2015

PALOMA DE PICASSO

Marcus Vinicius Quiroga



PALOMA DE PICASSO
 (Composições em preto e branco)

O pintor, digo, poeta andaluz risca
um pássaro no espaço madrileño,
que voa, voa até sair da vista.

Toda cidade encontra-se em Paloma
no chão das praças, no alto dos telhados
de Sevilha, Granada ou Barcelona.

Como se fosse senha ou codinome
Paloma ecoa lá dentro de Espanha,
finalmente seu único idioma.

Uma ave, digo, poeta catalã
rabisca frases no céu da Galícia,
palavras de utopias e amanhãs.

Um voo que parece mais mosaico,
feito de muito espaço e poucas linhas,
traz nas asas lições do ar e presságios.

Picasso espalma as mãos, oferta a ave
que parte como símbolo sem pátria,
além, tão mais além de toda margem.





sexta-feira, 20 de março de 2015

AUTOESTRADA PARA TEBAS







                                       Marcus Vinicius Quiroga


AUTOESTRADA PARA TEBAS
 (Autoestrada para Tebas)

quanto mais o verso investiga,
menos sabe e bem mais duvida,
que este é seu destino e tragédia.

o corpo, tão frágil e eterno,
é o que se avista mais perto
nesta estrada que vai a Tebas.

nas mãos sustém suas escolhas:
o mundo é como ele o olha,
não os seus acontecimentos.

quem escreve é um porta-voz,
que traz também a fala oposta,
pois os fatos dois lados têm.

e a escrita tanto se cifra,
como cifra o que é o não-dito,
além do que se lê na folha.

Tebas não é só a cidade,
é o discurso de quem evade
e sustém nas mãos as escolhas.

quem carrega Tebas na carne
sabe o que lá dentro se parte
e o que não mais se reconstitui.

não faz diferença onde esteja:
traz a cicatriz no desejo
e uma vida absurda, gratuita.

 
 



quinta-feira, 19 de março de 2015

PÉROLA IRREGULAR



    Marcus Vinicius Quiroga

PÉROLA IRREGULAR
 (O xadrez e as palavras)

se não fosse o poema exaspero
da forma que se busca áspera,

se não fosse a pedra que se torce
não-linear como um certo Borges

a arte se esqueceria inércia
e em si mesma teria o desfecho

antes seja esta anti-récita
esta linha de fuga, este êxodo

antes seja a pintura a têmpera,
um quadro que a si mesmo pensa

e de tal maneira se reflita:
escrita sobre a escrita da escrita

que afaste do texto o supérfluo,
o que sendo a mais é deficit

ainda que a linha trace a hipérbole
no desenho irregular da pérola,

qual um símbolo de arte inquieta
que ama a vida e compõe réquiem

antes seja esta arte que encontra
em si o favorável e o contra

para que mantenha sempre o diálogo,
ainda que com palavras ásperas

ainda que quando feita matéria,
tenha a obsessão da réplica

e discorde de ser perfeita pérola
e cuspa na arte que se quer Belo

porque posta irregular tem gula
de inversões, interrupções, anacolutos





quarta-feira, 18 de março de 2015

CINEMA EM PRETO E BRANCO






CINEMA EM PRETO E BRANCO
 (Composições em preto e branco)
                      

O tempo amarela na tela do cinema:
despede-se no fotograma que se queima.
Não se recupera a vida na moviola,
toda cena efêmera não sai da memória.

Na sala de espera, a música do piano
faz com que o relógio do tempo não se canse.
De forma que não se sinta a fugacidade,
nem se espere da vida um tipo de resgate.

O tempo amarela na tela da memória:
a matinê que se repete não recorda
as lembranças desta época no “poeira”.
A câmara afasta a juventude desfeita.

Do lado de fora uma vida em preto e branco,
um filme do neorrealismo italiano,
alertava que em cada um dos fotogramas
um pouco de nós se perdia, fora do ângulo.
                 

Marcus Vinicius Quiroga 






terça-feira, 17 de março de 2015

DIÁLOGO DEL ESPEJO







DIÁLOGO DEL ESPEJO


enquanto Pessoa se escanhoa
surge-lhe Caeiro e a metafísica
inquieta-lhe talvez a vida dupla

haveria um sentimento de culpa
de nem sempre ser ele mesmo?

coisas de poeta. A pele áspera
se oferece à lâmina afiada
e o diálogo lento se trava

que me diz, Caeiro, sua obra
com que fingidamente filosofa?

bem sabes tu, falso mestre,
toda palavra é em si fictícia
nada do que digo é o que digo

diz isto, pois existe só em jogo
diante de mim, modelo-reflexo

não te peço que me creias
tu que, escondido em faces alheias,
não te aceitas como não és

Enquanto o tempo se escoa
Pessoa se cala. Tudo o mais são papéis.


Marcus Vinicius Quiroga






segunda-feira, 16 de março de 2015

XADREZ DE ESTRELAS


























XADREZ DE ESTRELAS
ou O TABULEIRO DE XADREZ Nº 2
 (Composições em preto e branco)


Na mesa posta, encontram-se as diversas peças
que se alternam de acordo com o jogo, as regras.
As peças pretas, por exemplo, só se movem
quando é dado um sinal, a senha metafórica.
As brancas, por vez outra, se deixam à espera
como serpentes que, cegas, melhor enxergam.
O jogo é este: o de um salto, mas matemático:
um surpresa certa para o xeque-mate.

Na mesa posta, os lances ainda latentes
fazem no tabuleiro uma dança, um desenho.
Embora haja de um lado só dezesseis peças,
todos os movimentos jamais se repetem.
O jogo se faz único, texto que muda,
reescrito pelas mais diferentes leituras.
Sessenta e quatro casas formam o simbólico
espaço, em que deslizam sentidos imóveis.

Na mesa posta, o jogo se reinicia.
As peças se imaginam, sem dúvida, eternas,
e bocejam diante da quebra da escrita.
Todos os jogadores parecem de pedra.


Marcus Vinicius Quiroga