sábado, 28 de fevereiro de 2015

O CARRO PRETO DE HENRY FORD
















O CARRO PRETO DE HENRY FORD
(Composições em preto e branco)

Feito o texto serial,
isto é, com versos em série,
como em linha de montagem,
em fábrica lá na América,

tem-se uma obra barata
e de manutenção fácil:
basta fazer um poema
com quatro versões ou faces.

Mas se ele tirar patente,
sendo sempre com cor preta,
como se um carro da Ford,
o antigo modelo T,

tem-se uma obra mais simples,
embora feita com técnica:
palavras que sejam síntese
de outras estradas internas,

porque nem todas as vias
são próprias para automóvel.
Há vias que são tão íngremes,
com homens que vão tão sós,

que somente a poesia
é capaz de percorrê-las,
trazendo na boca o gosto
de metáfora e poeira.



 Marcus Vinicius Quiroga



sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

MANUAL





MANUAL
 (Jardim das delícias)

Os verbos orientam a montagem do homem,
de sorte que ele saiba um idioma, mexa
os membros e aceite o seu desígnio.
Uma vez montado, ele recebe uma caixa
com instruções e alguns remédios.
Tempos depois ele não se lembrará
da operação e se sentirá alegre,
de acordo com a página 58 da alegria.
Isto dá certo alívio para os engenheiros
que projetaram as peças e o passo a passo
de sua existência. Este riso
que interrompe a escuridão das horas
merece uma fotografia, um outdoor
a ser espalhado nos bairros mais incrédulos.
A página 135, que diz respeito à restauração,
saberá reparar o filete de sangue
que escorre inconvenientemente de sua boca. 



Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

ÉDIPO VAZA OS OLHOS

























ÉDIPO VAZA OS OLHOS
 (Autoestrada para Tebas)

Édipo vaza os olhos, escolhe
o escuro. por medo
do espelho,
parte de Tebas, leva
o esquecimento nas mãos.

Édipo sabe as veredas,
os estreitos,
os abismos à beira dos dias:
não há mais retorno.

para trás o trono vazio,
o enigma; quisera
que a tempestade de areia
desaparecesse com Tebas,

como se nada tivesse acontecido.
mas o peso da culpa
lhe dobra os passos; lento,
arrasta correntes
que não há em seu pé torto.

Édipo vaza os olhos, escolhe
a vida, ainda que morto,

recolhe a faca ensanguentada
na bainha e se dirige
à multidão; já é tarde,
quando do profeta
se lembra.

parte de Tebas à noite,
mas a noite agora
não faz a menor diferença.



 Marcus Vinicius Quiroga


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CARTA A FERNANDO PESSOA, ELE MESMO

























CARTA A FERNANDO PESSOA, ELE MESMO
 (O cinematógrafo)

escrever a poetas é disparate
eles não têm posta-restante
e preferem os jogos de palavras
a manter em dia a correspondência

dados como são a fingimentos
usam assinaturas alheias
para criar equívocos de destino
e fazer com que a carta retorne

como personas não têm morada
(habitam poemas às escondidas)
não há como manter um diálogo
e frequentar a mesma tabacaria

ao pé de Fernando Pessoa
reúnem-se outros poetas, se calhar
numa mesa lá na esplanada
como se os tantos não fosse um só

escrevem poemas em guardanapos
que acabam nos perdidos & achados
até que haja vinho que baste
até que a vida de repente parta



 Marcus Vinicius Quiroga










segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

UM PINTOR DIANTE DE UM QUADRO COM UM PINTOR DIANTE DE UM QUADRO

























UM PINTOR DIANTE DE UM QUADRO
COM UM PINTOR DIANTE DE UM QUADRO
(Campo de trigo maduro)


o artista se angustia em frente à tela:
tudo que traça no branco se esvai
em outra ausência que também revela
uma pintura antes da tela, atrás

mas que cores são estas? que miragem?
na textura da tela a mão não as sente
e os críticos com teorias não acham
como explicar vermos o que é ausente

a palheta risca um fino desenho,
cega trajetória pelo vazio,
buscando um mundo sem saber a senha
nem os limiares de seu domínio

outras formas surgem, imergem imóveis
traindo a expectativa dos olhares
que se surpreendem por razão à lógica
com a pintura que é única e vária

o artista se angustia em frente à tela
as ideias não cabem na moldura
mas cabem como se dentro da cela
houvesse a liberdade que se expulsa

e que arte se biparte ou se bifurca
em veredas, afluentes e margens
sendo mais verdadeira quando oculta
e, mais ocultando, quando mais age?

mas se não reconhece a figura,
seria este quadro obra de magia,
criado por pincéis e mãos de bruxa
de uma luz que esconde de tão sombria?

ou seria uma pintura inquieta
que se visse como se ouvisse música
e o pintor fosse na tela o poeta
que somente assina a obra, se inconclusa?


 Marcus Vinicius Quiroga


domingo, 22 de fevereiro de 2015

MAGRITTE DE COSTAS




MAGRITTE DE COSTAS
(Cinematógrafo) 


Magritte fabrica espelhos
nas horas de folga da pintura
para as despesas extras

seus espelhos no entanto
não parecem familiares
refletem sob outro ângulo

os objetos postos à frente
não diria que os deformam
nem que não são fiéis apenas

antes escolhe elementos
que não têm correlação
e os põe juntos, como um pêndulo

que se movesse ao contrário:
o duplo, o invertido, o incerto
que há na carta de baralho

de tal sorte não se sabe
se o seu quadro que nos olha
está de frente ou de costas

tal ilusão de ótica, tal truque
nos interroga pelas evidências
ausentes na anti-pintura

Magritte não se vê no espelho
o espelho, sim, é que vê
que o pintor não está a vê-lo




 Marcus Vinicius Quiroga


sábado, 21 de fevereiro de 2015

IRREVERSÍVEL
























IRREVERSÍVEL


desapareceu num quadro de Van Gogh
sem deixar vestígios

quem sabe o líquido que existia em sua taça
talvez as palavras não tenham sido suficientemente tácitas

seria capturado num leilão tardio?

ou sob a  forma de um trigo teria amadurecido
a paisagem e o desvario?



Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

TEORIA















TEORIA
(Modus Vivendi)

Não é a palavra que escrevo
                                          é a escolha da palavra

A teoria me olha
                        Mas não cedo
Os versos não seguem cegos
                             pela estrada
O bastão na mão e o arrependimento


Poema não aceita o destino


O poema se assina:
Só existe a história
O grafite e a folha


Não sou escravo da palavra
escrevo a escolha


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A PROPÓSITO DE SOMBRAS
















A PROPÓSITO DE SOMBRAS
(Manual de instruções para cegos) 


uma sombra não é um não
que se diz para ser contra
tem tão mais profundidade
sombras por trás de outras sombras
na escuridão se anuncia
e segredos íntimos desvenda
como espelho aperfeiçoado
cujo vidro é posto entre
os dois lados da existência

uma sombra não tem o uso
que tem o móvel biombo
sua função não é esconder
o que há dentro de si sombra
mas de incomodar a vista
de forma que ela, irritada,
reflita sobre todas as coisas
com mais lucidez e mais clara
seja a correnteza, a água

uma sombra não é o que diz sem
antes é o que significa com
porque é dupla: frente e avesso
com o peso próprio das sombras
e este peso se carrega
nas mãos, nos bolsos, nos ombros
daí a expressão no rosto
franzida, esquecida no ontem
que a memória é outro nome de sombra




Marcus Vinicius Quiroga 



quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

NAVEGAÇÃO À DERIVA















NAVEGAÇÃO À DERIVA
(Manual de instruções para cegos)  

quem navega à deriva
sabe que há vida além dos mares nos mapas
além das bússolas, astrolábios, diários de bordo
além das lendas dos monstros marinhos, dos mitos

quem navega à deriva
acredita que há nos mares miragens, portos
inesperados, ilhas flutuantes, botes e salva-vidas
água potável, aves voando sobre terra, vertigem

quem navega à deriva
aprende que há mares dentro do mar à vista
profundidade secreta, origem do mundo, poesia
escrita cifrada à espera de quem lhe dê sentido

quem navega à deriva
se perde da costa, do farol na torre, dos olhares
atentos, dos radares, das cartas de navegação
imigra para mares de imprevista dicção





Marcus Vinicius Quiroga 



sábado, 14 de fevereiro de 2015

PUGILISMO


























PUGILISMO
(Poemas não usam soco inglês)  


Todo poeta se finge um boxeador,
que se entrega de corpo à luta vã
de  lutar com palavras, de dobrá-las
a seus desejos, na página plana,
como se arena de combate fosse. 

Todo poeta é fã de jogo de boxe
e aprecia seus termos metafóricos.
Por isto diz que o verso deu um jab,
seguido de diretos no silêncio,
levando-o a ter mais uma queda. 

Todo poeta repete o senhor Hemingway,
que adorava dar murros sem as luvas
nos textos que eram muito além do peso.

As mãos sangrava nas palavras brutas,
até torná-las mais leves e enxutas.




 Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

SIMULACRO










SIMULACRO
(Jardim das delícias)


O pão posto sobre a mesa
para a natureza-morta do pintor,
que, não satisfeito, trouxe frutas.
Foram dias de exercício e pintura:
o pão, por exemplo, foi refeito
inúmeras vezes e posto em diversos
pontos da mesa, até que um dia,
por cansaço ou princípio de arte,
o pintor olhou a cena concluída
e afastou-se, dando as costas para a tela.
Do outro lado da janela, crianças
famintas espiavam pão e frutas
em estado de decomposição.




Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A TRAIÇÃO DO HERÓI
















A TRAIÇÃO DO HERÓI
(Homem visto em contraluz) 


Não se esquive,
não se prive do destino,
como coisa alheia; afie a faca
na pedra primeira; a lâmina,
espécie de mão, se alarga
com a sanha de um bicho.

O que lhe apraz
traz em si gosto de tempo,
cujas raízes deitam fundas;
a mordida da fruta com casca
é lição que a vida aprende,
enquanto a faca lenta rasga.

Não se espante,
não fuja dos vários duelos,
como se não fosse a causa;
em tudo escorre sangue,
em tudo a veia salta,
em tudo a paixão tem mérito.

O que o atrai
trai o desejo no vocabulário;
palavra não tem inocência,
como se o grosso escarro
já fosse em si a doença.
Todo punhal é matéria de suspense.